Autores: Mariana Vieira da Silva; Catarina Faria Tavares; Joaquina Antunes;
Serviço de Pediatria do Centro Hospitalar Tondela Viseu
A identidade de género refere-se à noção subjetiva e sentimento individual de pertença ao género masculino, feminino ou outro. A construção de uma identidade de género não concordante com o género atribuído à nascença não é causada por doença mental. A sua identificação e orientação precoce por profissionais capacitados minimiza o risco de resultados prejudiciais à saúde.
Ao contrário do que se pensava no passado, a identidade de género não é uma conceptualização dicotómica/binária (masculino vs. feminino), mas sim um conceito dimensional (continuum entre o feminino e o masculino)1,2.
O desenvolvimento da identidade de género é um processo complexo, resultante da interação entre fatores individuais biológicos, fatores do ambiente familiar e social (interação com os pais, pares e cultura onde a criança se insere) e onde o estadio maturativo físico vs. psicológico determina a expressão desta problemática. Sendo assim, ao longo do desenvolvimento, a criança vai construindo a sua identidade de género que, na maioria dos casos, é congruente com o sexo biológico3-5. Por volta dos 5-7 anos, verifica-se maior estabilidade e consistência de género1.
A não conformidade de género (NCG) verifica-se quando a identidade, expressão e o papel de género não são congruentes com o sexo atribuído à nascença1.
Temos assim os indivíduos cisgénero, quando existe conformidade entre a identidade de género e o sexo atribuído à nascença e os trans, termo que designa indivíduos não cisgénero. Os indivíduos trans experienciam esta diversidade de género com afirmações de género heterogéneas, múltiplas e interseccionais. Deste modo surgem nomenclaturas como agénero, género fluido, pangénero, bigénero. Em cada subtipo existem simbologias, expressões linguísticas, vestuários e comportamentos próprios2,3,5,6.
Apesar da heterogeneidade deve suspeitar-se de NCG perante a presença de comportamentos e mímica corporal atribuída ao género não biológico (jogos, atividades, roupa, amizades com pares do sexo oposto…), desconforto com o papel de género que lhes é atribuído (recusa em usar WC/balneários, vestuário escolar diferenciador de género…), desejo em serem tratados por nome e pronome do género com o qual se identificam, repulsa pelos genitais e caracteres sexuais secundários tentando disfarçá-los (utilização de faixas, velcros, roupas largas...) e por vezes mutilá-los4.
Nas crianças em idade escolar, geralmente são os pais quem procura ajuda perante as suas preocupações e dificuldade em lidar com a identidade de género dos filhos. Na adolescência, os próprios jovens procuram o profissional de saúde, particularmente aquando do desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, experiência extremamente angustiante em indivíduos com NCG3.
Apesar da fase inicial da adolescência poder trazer duvidas e incertezas sobre emoções/autoimagem na esfera da identidade/orientação sexual, a maioria não expressa sofrimento e ultrapassa esta “incerteza”. Contudo perante uma suspeita de NCG o profissional de saúde não deve desvalorizar esta problemática; deve ser paciente, usar de linguagem inclusiva (tentar conhecer terminologias de expressão género, evitar comentários como “sentes-te um rapaz ou rapariga”, desvio sexual) vigiar linguagem não verbal, “pensar fora da caixa” e saber referenciar para equipas multidisciplinares experientes1.
Durante a entrevista clínica deve-se ter particular atenção à comunicação não verbal do adolescente, vestuário, interação com quem o acompanha e pesquisar: desenvolvimento psicossexual (emoções, comportamentos …); stressores psicossociais (na escola, família…); dinâmicas familiares (etnia, religião, espiritualidade); doença psiquiátrica (ansiedade, comportamentos auto lesivos, ideação suicida) ou fatores de risco para o seu desenvolvimento (sexting e uso de aplicações de encontros sexuais, consumos, absentismo escolar, bullying, abandono de desporto). Em relação aos comportamentos ter particular atenção ao número de parceiros sexuais/IST/prevenção de gravidez, uso de drogas associadas ao sexo, prostituição (muitos adolescentes e jovens usam prostituição para angariar dinheiro para “processo de mudança género”). Perceber também o desejo do adolescente no tratamento redefinidor de género.
Esta informação deve ser sempre complementada com o testemunho de familiares/tutores ou professores.
No exame objetivo dar particular atenção a como o adolescente deseja ser observado! No que respeita aos parâmetros objetivos: IMC, estadio Tanner, evidência de auto-lesões, genitais externos e região anal (procurando sinais de ambiguidade sexual ou IST se vida sexual ativa).
De acordo com o DSM-5, estamos perante o diagnóstico de disforia de género (DG) quando os indivíduos experienciam um intenso e persistente desconforto psicológico e físico decorrente da incongruência entre o sexo atribuído à nascença e a identidade de género.
O DSM-5 apresenta os critérios de diagnóstico de disforia de género separadamente definidos para crianças (302,6) e adolescentes e adultos. (302,85)
A prevalência de DG nas crianças e adolescentes é muito variável na literatura, mas parece ser mais frequente no género masculino face ao feminino. Nos últimos anos o número de referenciações por DG tem aumentado, podendo este aumento dever-se a um real aumento da prevalência, a uma desestigmatização dos fenómenos trans ou à maior oferta de opções terapêuticas e respostas especializadas1,4,7.
Crianças e adolescentes com disforia de género devem ter um acompanhamento por uma equipa multidisciplinar (pedopsiquiatra, endocrinologista pediátrico, psicólogo, assistente social…).
A falta de apoio familiar mostra-se também como um importante fator de sofrimento nestas crianças e adolescentes. A rejeição familiar prende-se muitas vezes com o baixo nível educacional, crenças religiosas, vergonha social e sentimento de culpa e de perda do filho “idealizado”. A terapia familiar pode ajudar na desestigmatização/normalização e na prevenção/gestão de possíveis conflitos familiares5,8.
As intervenções de afirmação de género incluem:
• Reflexão – processo em que se esclarece o adolescente sobre a sua identidade/orientação sexual;
• Aceitação e “afirmação social” (“coming out – sair do armário) que deve começar no período pré-púbere (evitar castigos, linguagem ofensiva, atitudes castradoras e modificadoras de expressão de género individual na família/escola/comunidade);
• Procedimentos médicos e cirúrgicos de redefinição de género. Em toda a fase do processo deve estar envolvida uma equipa multidisciplinar, nomeadamente de saúde mental. Não esquecer que todas as pessoas significativas do adolescente devem estar mobilizadas! O profissional de saúde deve também indicar grupos de apoio e associações de indivíduos e famílias centradas na diversidade de género.
O tratamento redefinidor de género inclui intervenções medicas reversíveis/ parcialmente reversíveis e procedimentos cirúrgicos irreversíveis2,3,8.
No que diz respeito ao enquadramento legal em Portugal, a Lei nº 38/2018, de 7 de agosto, estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa.
Artigo 7º: As pessoas de nacionalidade portuguesa e com idade compreendida entre os 16 e 18 anos podem requerer o procedimento de mudança de sexo no registo civil e da consequente alteração do nome próprio, através dos seus representantes legais (…) mediante relatório solicitado a qualquer médico inscrito na Ordem dos Médicos ou psicólogo inscrito na Ordem dos Psicólogos, que ateste exclusivamente a sua capacidade de decisão e vontade informada sem referência a diagnósticos de identidade de género.
Em Portugal, o Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Infância e da Adolescência recomendou a criação de três equipas especializadas a nível nacional (Centro Hospitalar Universitário do Porto, Centro Hospitalar Universitário de Coimbra e Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa), de caracter multidisciplinar, para onde deverão ser orientadas estas crianças e adolescentes, de acordo com os critérios:
- Obrigatório quando está em causa a indicação para tratamentos hormonais;
- Recomendável nas situações em que esteja em causa a transição social ou em que coexiste psicopatologia complexa;
- Opcional nas restantes situações de DG.
A identidade de género é um processo complexo que ocorre ao longo do desenvolvimento de cada pessoa. O médico assistente (medicina geral e familiar ou pediatria) tem uma posição privilegiada para abordar o desenvolvimento psicossexual, identificando precocemente NCG/DG, podendo trabalhar esta temática com o individuo e a sua família e orientar atempadamente.
1 - Prata AT, Araújo C, Cordovil C, Laureano M, Borges S. Recomendações sobre abordagem da diversidade de género em crianças e adolescentes. Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Infância e da Adolescência. 2021.
2 - OPP. Linhas de Orientação para a Prática Profissional no Âmbito da Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQ. 2020;33.
3 - Claahsen - van der Grinten H, Verhaak C, SteensmaT, Middelberg T, Roeffen J, Klink D. Gender incongruence and gender dysphoriain childhood and adolescence— current insights in diagnostics, management, andfollow-up. Eur J Pediatr. 2021;180(5):1349–57.
4 - Olivera AGC, Vilaça AF, Gonçalves DT. Da transexualidade à disforia de género – protocolo de abordagem e orientação nos cuidados de saúde primários. Rev PortClínica Geral. 2019;35(3):210–22.
5 - Paiva ECC.Tratamento da Disforia de Género em Idade Pediátrica. 2022;
6 - Blondeel K, de Vasconcelos S, García-Moreno C, Stephenson R, Temmerman M, Toskin I. Violence motivated by perception of sexual orientation and gender identity: A systematic review. Bull World Health Organ.2018;96(1):29-41E.
7 - Surace T, Fusar L, Lucia P, Vito V, Chiara C, Rossella A, et al. Lifetime prevalence of suicidal ideation and suicidalbehaviors in gender non conforming youths : a meta analysis. EurChild Adolesc Psychiatry [Internet]. 2020;(0123456789). Available from:https://doi.org/10.1007/s00787-020-01508-5.
8 - Muñoz Calvo M. Disforia de género en menrores: actituddiagn´sotica y tratamiento. ADOLESCERE • Rev Form Contin la Soc Española Med laAdolesc. 2018;VI(2):26–32.
9 - López Sánchez F. Disforia de género en la infancia yadolescencia. Adolescere.2018;VI(2):15–25.
10 - Skordis N, Kyriakou A, Dror S, Mushailov A,Nicolaides NC. Gender dysphoria in children and adolescents : an overview. 2020.