Autores
Sónia Andrade Santos – Interna de Formação Especializada em Pediatria, Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar Tondela-Viseu
Sandra Soares Cardoso – Interna de Formação Especializada em Pediatria, Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar Tondela-Viseu
Paulo Santos – Diretor do Serviço de Pedopsiquiatria, Centro Hospitalar Tondela-Viseu
Elisabete Santos – Assistente Graduada de Pediatria, Coordenadora da Unidade de Medicina do Adolescente, Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar Tondela-Viseu
As perturbações do comportamento alimentar (PCA) constituem um grave problema de saúde pública, sendo a infância e adolescência dois períodos críticos para o seu desenvolvimento1. Caraterizam-se por uma perturbação na alimentação ou comportamentos relacionados, que resultam numa alteração do consumo/absorção de alimentos, comprometendo a saúde física e o desenvolvimento emocional, cognitivo e psicossocial (Tabela 1)1,2. Abordaremos neste texto as PCA mais frequentes na adolescência: anorexia nervosa (AN) e bulimia nervosa (BN).
A AN e a BN são doenças psiquiátricas caracterizadas por alterações do comportamento alimentar relacionadas com a distorção da imagem corporal, sobrestimando a forma corporal e o peso1. Na AN existe restrição da ingestão energética em relação às necessidades levando a um peso significativamente baixo para a idade, sexo, trajetória do desenvolvimento e/ou saúde física, ao que se associa uma perturbação da perceção corporal e medo intenso de ganhar peso2. Na BN existe compulsão alimentar, seguido de sentimentos de culpa/ frustração e posteriormente comportamentos de compensação; a pessoa tem desejo obsessivo de perder peso, mas, devido a esses episódios de compulsão-compensação, não consegue2.
São vários os sinais que podem alertar para a presença de PCA3,4:
- Índice de massa corporal (IMC) ou peso corporal anormalmente baixo ou alto para a idade;
- Perda de peso significativa ou grandes oscilações de peso, sem causa médica aparente;
- Atitude extremamente crítica em relação à forma e imagem corporal (achar-se sempre gordo);
- Dietas, práticas alimentares restritivas (como fazer dieta quando existe baixo peso) ou comportamentos ritualizados à refeição;
- Não assumir a fome e/ou utilizar distrações para a fome (ex. pastilhas elásticas, bebidas light);
- Comer frequentemente grandes quantidades de comida de forma compulsiva;
- Comportamentos compensatórios incluindo a prática de exercício físico em excesso, uso de laxantes ou diuréticos, vómitos (odor de vómito no WC que desaparece sistematicamente após as refeições);
- Familiares ou cuidadores identificam uma mudança no comportamento alimentar que os preocupa e referem essa situação ao profissional de saúde;
-Sinais ou sintomas físicos de desnutrição, incluindo acrocianose, palidez cutânea, palpitações ou lipotimias;
- Erosão do esmalte dentário, sinal de Russel (calosidades/escaras no dorso das mãos);
- Amenorreia nas raparigas e perda de ereção nos rapazes, outras alterações endócrinas ou sintomas gastrointestinais inexplicados;
- Isolamento social, particularmente nas situações que envolvem alimentação;
- Instabilidade emocional;
- Outras perturbações de saúde mental associadas;
- Participação em atividades associadas a alto risco de PCA, por exemplo desporto, moda ou dança profissional.
A AN e a BN apresentam critérios de diagnóstico específicos que se encontram discriminados na Tabela 1. Alguns adolescentes apresentam comportamentos alimentares desadequados, porém não cumprindo completamente os critérios de diagnóstico para uma PCA específica. Nestas situações as consequências físicas e psicológicas poderão ser as mesmas, evoluindo com o tempo para uma categoria específica de PCA se não forem identificadas e tratadas atempadamente5.
Na prática clínica, o diagnóstico de PCA, deverá ser considerado num adolescente que inicia práticas de controlo de peso pouco saudáveis e/ou demonstra um pensamento obsessivo relacionado com alimentos, peso, forma corporal e exercício e não apenas naqueles que possuem os critérios de diagnóstico estabelecidos3.
Perante a suspeita clínica de PCA deve ser efetuada uma história clínica detalhada e realizado um exame físico completo, com especial atenção aos sinais físicos de desnutrição6:
- Antropometria: peso, altura, IMC com os respetivos percentis, reconstrução das curvas de crescimento (descartar atraso do crescimento);
- Sinais vitais: frequência respiratória e cardíaca (bradicardia), pressão arterial em decúbito e ortostatismo (hipotensão), temperatura (hipotermia);
- Pele, fâneros e extremidades (xerose cutânea, cabelo fino, unhas quebradiças, lanugo, extremidades frias e cianóticas);
- Orofaringe e dentes (hipertrofia das parótidas, erosão dentária);
- Auscultação cardíaca (ritmo e sopros);
- Exame abdominal;
- Exame neurológico sumário.
A avaliação psiquiátrica nestes doentes é fundamental, quer para o diagnóstico e orientação, quer para descartar a presença de problemas de saúde mental comumente associados a distúrbios alimentares, incluindo depressão, ansiedade, perturbação obsessivo-compulsiva, comportamentos auto-lesivos e risco de suicídio. Deve ser também excluído o consumo de drogas, outras substâncias ou álcool4.
O diagnóstico de PCA é clínico, no entanto a realização de exames complementares de diagnóstico é necessária para avaliar o impacto orgânico da doença quando existe perda de peso ou comportamentos purgativos e/ou restritivos3,6:
- Hemograma com leucograma;
- Gasometria venosa;
- Glicemia, ureia, creatinina;
- Ionograma com sódio, potássio, fósforo, magnésio e cálcio;
- Transaminases (TGO, TGP), fosfatase alcalina e bilirrubinas, amílase e lípase;
- Proteínas totais, albumina;
- Colesterol total, HDL, LDL, triglicerídeos;
- T4 livre, TSH;
- Ferro e ferritina;
- Velocidade de Sedimentação;
- Vitamina D, vitamina B12, ácido fólico;
- INR;
- Sumária de urina;
- Eletrocardiograma.
Outros exames complementares serão realizados de acordo com a avaliação clínica.
No caso desta avaliação inicial identificar alterações que condicionem risco vital, os adolescentes devem ser imediatamente encaminhados para o Serviço de Urgência7,8:
- IMC <14 Kg/m2 ou perda rápida de peso (em adolescentes peso inferior a 70% do mínimo adequado ao sexo, idade e altura);
- Hipotensão: pressão arterial sistólica <90 mmHg, ou diferencial decúbito-supino >10 mmHg;
- Frequência cardíaca <40 bpm ou >120 bpm. Qualquer arritmia de novo, incluindo prolongamento do QTc, alterações ST ou na onda T;
- Temperatura <35.5°C;
- Hipoglicemia;
- Desequilíbrios hidroelectrolíticos: desidratação (Na>150 mmol/L), hiponatremia, hipocaliemia (<3,4mEq/L), hipofosfatemia (<2,7mg/dL), hipomagnesemia (<0,7mMol/L);
- Elevação moderada a grave das transaminases;
- Pancreatite;
- Hipoalbuminemia: <30 g/mL;
- Neutropenia: <1500 /uL;
- Confusão, delírio ou convulsões;
- Risco de suicídio.
Se não houver risco de vida identificado após a avaliação inicial, o adolescente deve ser encaminhado para um Serviço com equipas com formação em PCA e conhecimentos sólidos acerca do desenvolvimento físico e psicológico de um adolescente saudável. A avaliação e a abordagem devem ser multidisciplinares por uma equipa constituída por Pedopsiquiatra, Pediatra com formação em Medicina do Adolescente, Enfermeiro, Psicólogo e Nutricionista3,6.
O tratamento consiste na intervenção psicopatológica, orientação de eventuais comorbilidades psiquiátricas e na estabilização orgânica com a inerente reabilitação nutricional associada6.
Para a deteção precoce de uma PCA, sugerimos que sejam procurados os seguintes aspetos5:
Perda ponderal significativa, mesmo com IMC adequado;
Comportamento alimentar desadequado, com início de dietas/alimentação "saudável", ou o simples facto de saltar refeições;
Insatisfação quanto à sua imagem corporal, nomeadamente o facto de não gostar de partes do seu corpo;
Inicio de exercício físico exagerado.
O principal papel do Pediatra ou Médico de Família é o reconhecimento ou suspeita diagnóstica precoce da PCA, identificação de fatores que colocam em risco a vida do adolescente, seguida de uma referenciação atempada para equipas especializadas nesta patologia.
1 - Serrano A; Sancho G; Rivero J. Trastorno del comportamiento alimentario. I Curso de Psiquiatría del niño y del adolescente para pediatras. Sociedad Española de Medicina de la Adolescencia (SEMA). 2020; 4; p. 163-187.
2 - American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders: DSM-5™. 5th ed. 2013.
3 - Casanova T, Santos P, Figueiredo C, Silveira A. Anorexia Nervosa: proposta de linhas orientadoras. Secção de Medicina do Adolescente da Sociedade Portuguesa de Pediatria. Acta Pediátrica Portuguesa. 2009: 40(3): p. 133-135.
4 - National Guideline Alliance (UK). Eating Disorders: Recognition and Treatment. London: National Institute for Health and Care Excellence (NICE); 2017 May. PMID: 28654225.
5 - Bacalhau S, Moleiro P. Perturbações do comportamento alimentar em adolescentes – o que procurar? Acta Med Port. 2010; 23(5): p. 777-784.
6 - Equipa das Perturbações do Comportamento Alimentar do Centro Hospitalar Tondela-Viseu. Anorexia Nervosa – Protocolo de Atuação. Viseu, 2017, janeiro.
7 - Hay P, Chinn D, Forbes D, Madden S, Newton R, Sugenor L, et al. Royal Australian and New Zealand College of Psychiatrists clinical practice guidelines for the treatment of eating disorders. Aust N Z J Psychiatry. 2014; 48(11): p. 977–1008.
8 - Royal College of Psychiatrist. Medical Emergencies in Eating Disorders: Guidance on Recognition and Management. 2022, May.
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