Autores:
Joana Vieira de Melo, Interna de Formação Específica de Pediatria, Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar Tondela-Viseu
Francisco Ruas, Assistente Hospitalar de Pediatria, Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar Tondela-Viseu
Joana Magalhães, Assistente Hospitalar de Pediatria, Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar Tondela-Viseu
Joaquina Antunes, Assistente Hospitalar de Pediatria, Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar Tondela-Viseu
Elisabete Santos, Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria, Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar Tondela-Viseu
Os comportamentos autolesivos (CAL) são uma expressão de grande mal-estar psicoemocional que tem vindo a aumentar na população adolescente. É essencial compreender estes comportamentos e as suas implicações. Este texto tem como objetivo abordar a definição e epidemiologia dos CAL, os seus fatores de risco e as estratégias de abordagem e intervenção.
Os CAL, segundo a Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders-5 (DSM-5), onde foram incluídos em 2013, devem cumprir os seis critérios propostos para que o diagnóstico seja aplicável (Tabela 1) (1), sendo a caraterística essencial o facto de o indivíduo infligir repetidamente ferimentos no seu corpo. Por definição, os CAL são diferenciados dos comportamentos suicidas (nem sempre se associam a uma intenção de terminar a vida), de práticas socialmente aceites (tatuagens, piercings e rituais religiosos) e de comportamentos autoinfligidos indiretamente (perturbações do comportamento alimentar ou abuso de substâncias) (1). Habitualmente os CAL correspondem a uma forma de expressar e lidar com emoções negativas funcionando como autopunição e alívio do mal-estar psicológico através da dor física. Os CAL devem ser entendidos como uma expressão inequívoca de sofrimento e um pedido de ajuda, “não expresso” verbalmente. Se forem acompanhados de qualquer intenção de morte são classificados como tentativas de suicídio, pelo que é obrigatória a avaliação de intenção suicida na presença de CAL (2).
Os CAL apresentam uma prevalência de 17-18% na população adolescente (3,4). Em Portugal os adolescentes que referem CAL aumentaram de 19,6% em 2018 para 24,6% em 2022 (5). Geralmente têm início entre os 12 e 14 anos de idade (6–8). Antes desta idade os CAL podem associar-se a uma maior frequência de episódios, maior variedade de métodos utilizados e mais admissões hospitalares (9). Os CAL são mais frequentes no sexo feminino, que tende a utilizar cortes como método principal, enquanto que o sexo masculino prefere bater em partes do corpo ou queimar-se(10,11).
- História prévia de CAL.
- Sexo feminino.
- População LGTBQIAP+.
- Traços de personalidade desadaptativos (que na idade adulta poderão constituir perturbações de personalidade do grupo B como borderline, histriónico, narcisista ou antissocial).
- Psicopatologia: perturbação de ansiedade, perturbação depressiva, perturbação de oposição e desafio, perturbações do comportamento alimentar, stress pós-traumático.
- Estado de stress ou angústia, sentimentos de desesperança, impulsividade, baixa tolerância à frustração, eventos negativos ou desencadeantes como bullying.
- Pensamentos ou comportamentos suicidas prévios, exposição a CAL em colegas, familiares ou pessoas próximas, auto-relato de probabilidade de se envolver em CAL.
- Doença ou incapacidade física, dor crónica, perturbações do sono.
- História de maus-tratos ou de abuso sexual na infância.
- Psicopatologia parental, doenças crónicas dos pais, violência em contexto familiar, fraca comunicação familiar, estilos parentais autoritários, dependência de substâncias aditivas na família e história familiar de CAL.
- Ausência de rede social de apoio, vulnerabilidade socio-económica, grande isolamento social/geográfico, emigrantes/minorias étnicas.
A abordagem a um adolescente com CAL baseia-se na entrevista que deve contemplar um período inicial com os pais e adolescente e um período apenas com o adolescente num ambiente seguro, com linguagem empática e sem crítica. A confidencialidade deve ser assegurada, mas referindo as exceções como situações de risco para o adolescente (ideação suicida) (14,15).
A apresentação do adolescente é importante, nomeadamente a existência de vestuário incomum ou desadequado (como vários adornos que cubram os antebraços ou mangas compridas em temperaturas quentes) ou o facto de se mostrar ansioso quanto ao exame objetivo. No que respeita à avaliação das lesões, a evolução temporal é importante não só porque é um indicador da duração e frequência dos CAL, como define o tratamento específico das mesmas. Habitualmente as lesões no contexto de CAL são superficiais e não exigem tratamento médico, sendo, no entanto, importante avaliar a presença de sinais de infeção (15,16).
A entrevista estruturada (HEADSSSS ou SSHADESS) permite a avaliação biopsicossocial e o rastreio de outros fatores de risco que determinam a intervenção. (S – Strenghts, S – School, H – Home, A – Activities, D – Drugs / Substance use, E – Emotions/Eating, S – Sexuality, S – Safety) (14).
Durante a entrevista ao adolescente deve ser questionada diretamente a existência de CAL, e devem ser exploradas as suas características. Alguns exemplos de questões a colocar são (15):
Para adolescentes com escassos episódios de CAL superficiais, que não exijam tratamento médico e sejam de natureza experimental, a intervenção mais razoável será manter vigilância, sugerindo a intervenção psicoterapêutica de modo a desenvolver aptidões e comportamentos adaptativos, reduzir o sofrimento e promover o empoderamento.
No caso de existir ideação suicida, o adolescente deve ser avaliado por Pedopsiquiatria. A referenciação a esta especialidade é também recomendada nas seguintes situações (26):
A orientação inicial para adolescentes com CAL deve incluir a formulação de um plano de segurança individualizado que deve incluir: uma lista de sinais de alerta para o desencadear de CAL, estratégias para lidar com o desejo de automutilação e recursos para quando se sentirem frágeis. Os pais podem ser envolvidos limitando o acesso a substâncias ou objetos utilizados para CAL e prevenindo comportamentos de risco (como a inversão do período sono-vigília e o absentismo escolar).
O aconselhamento psicológico do SNS 24 (808 24 24 24) é uma plataforma que pode ser utilizada pelos adolescentes com possibilidade de orientação para serviços de saúde se necessário. As campanhas de divulgação sobre consequências dos CAL e sugestão de estratégias alternativas de regulação são essenciais para a literacia em saúde. O reconhecimento precoce e intervenção neste tipo de comportamentos são também uma das estratégias eficazes de prevenção do suicídio, sendo importante capacitar médicos, professores e outros membros da comunidade (27).
Os CAL têm uma prevalência relatada em até cerca de 25% dos adolescentes portugueses, com tendência para aumentar. Geralmente estes comportamentos têm início por volta dos 12 a 14 anos e são predominantes no sexo feminino. Vários fatores de risco foram identificados, incluindo história prévia de CAL, perturbações de personalidade, sentimentos de desesperança, entre outros e que devem ser explorados durante a avaliação biopsicossocial. A deteção precoce destes comportamentos e a abordagem com foco na prevenção, criação de um plano de segurança individual e o acompanhamento próximo são essenciais para estes adolescentes.
1 - American Psychiatric Association, editor. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Fifth ed. Arlington, VA; 2013.
2 - Barros A, Coelho J, Duarte P, Valadares S. Comportamentos Autolesivos e Suicidários na Adolescência: Identificar para ajudar. Coimbra: Instituto de Apoio à Criança - Polo de Coimbra; 2018.
3 - Swannell S V, Martin GE, Page A, Hasking P, St John NJ. Prevalence of nonsuicidal self-injury in nonclinical samples: systematic review, meta-analysis and meta-regression. Suicide Life Threat Behav. 2014 Jun;44(3):273–303.
4 - Muehlenkamp JJ, Claes L, Havertape L, Plener PL. International prevalence of adolescent non-suicidal self-injury and deliberate self-harm. Child Adolesc Psychiatry Ment Health. 2012 Mar;6:10.
5 - Gaspar T, Botelho Guedes F, Cerqueira A, Gaspar de Matos M. A Saúde dos Adolescentes Portugueses em Contexto de Pandemia – Dados nacionais do estudo HBSC 2022. Equipa Aventura Social, editor. Lisboa; 2022.
6 - Glenn CR, Lanzillo EC, Esposito EC, Santee AC, Nock MK, Auerbach RP. Examining the Course of Suicidal and Nonsuicidal Self-Injurious Thoughts and Behaviors in Outpatient and Inpatient Adolescents. J Abnorm Child Psychol. 2017 Jul;45(5):971–83.
7 - Glenn CR, Klonsky ED. Nonsuicidal self-injury disorder: an empirical investigation in adolescent psychiatric patients. J Clin child Adolesc Psychol Off J Soc Clin Child Adolesc Psychol Am Psychol Assoc Div 53. 2013;42(4):496–507.
8 - Gandhi A, Luyckx K, Baetens I, Kiekens G, Sleuwaegen E, Berens A, et al. Age of onset of non-suicidal self-injury in Dutch-speaking adolescents and emerging adults: An event history analysis of pooled data. Compr Psychiatry. 2018 Jan;80:170–8.
9 - Ammerman BA, Jacobucci R, Kleiman EM, Uyeji LL, McCloskey MS. The Relationship Between Nonsuicidal Self-Injury Age of Onset and Severity of Self-Harm. Suicide Life Threat Behav. 2018 Feb;48(1):31–7.
10 - Vázquez López P, Armero Pedreira P, Martínez-Sánchez L, García Cruz JM, Bonet de Luna C, Notario Herrero F, et al. Self-injury and suicidal behavior in children and youth population: Learning from the pandemic. An Pediatr. 2023;98(3):204–12.
11 - Hamza CA, Stewart SL, Willoughby T. Examining the link between nonsuicidal self-injury and suicidal behavior: a review of the literature and an integrated model. Clin Psychol Rev. 2012 Aug;32(6):482–95.
12 - Glenn C, K Nock M. Nonsuicidal self-injury in children and adolescents: Epidemiology and risk factors [Internet]. Post TW, editor. UpToDate. Waltham, MA: UpToDate; 2023. Available from: https://www.uptodate.com/contents/nonsuicidal-self-injury-in-children-and-adolescents-epidemiology-and-risk-factors?search=non suicidal self injury&topicRef=116738&source=see_link
13 - Glenn C, Nock MK. Nonsuicidal self-injury in children and adolescents: Clinical features and proposed diagnostic criteria [Internet]. Post TW, editor. Waltham, MA: UpToDate; 2023. Available from: www.uptodate.com
14 - Fonseca H. Entrevista Clínica em Medicina do Adolescente. Acta pediátrica Port [Internet]. 2017;48:334, 335. Available from: http://actapediatrica.spp.pt/article/view/13167/10114
15 - Glenn C, Nock MK. Nonsuicidal self-injury in children and adolescents: Assessment. Post TW, editor. Waltham, MA: UpToDate; 2023.
16 - Dhingra K, Ali P. Non-suicidal self-injury: clinical presentation, assessment and management. Nurs Stand. 2016 Sep;31(5):42–9.
17 - Lewis SP, Heath NL. Nonsuicidal self-injury among youth. J Pediatr. 2015 Mar;166(3):526–30.
18 - Nock MK, Joiner TE, Gordon KH, Lloyd-Richardson E, Prinstein MJ. Non-suicidal self-injury among adolescents: Diagnostic correlates and relation to suicide attempts. Psychiatry Res. 2006;144(1):65–72.
19 - Asarnow JR, Porta G, Spirito A, Emslie G, Clarke G, Wagner KD, et al. Suicide attempts and nonsuicidal self-injury in the treatment of resistant depression in adolescents: findings from the TORDIA study. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2011 Aug;50(8):772–81.
20 - Whitlock J, Eckenrode J, Silverman D. Self-injurious behaviors in a college population. Pediatrics. 2006 Jun;117(6):1939–48.
21 - Walsh B. Clinical assessment of self-injury: a practical guide. J Clin Psychol. 2007 Nov;63(11):1057–68.
22 - Koenig J, Rinnewitz L, Warth M, Hillecke TK, Brunner R, Resch F, et al. Psychobiological response to pain in female adolescents with nonsuicidal self-injury. J Psychiatry Neurosci. 2017 May;42(3):189–99.
23 - Koenig J, Thayer JF, Kaess M. A meta-analysis on pain sensitivity in self-injury. Psychol Med. 2016 Jun;46(8):1597–612.
24 - Wilkinson P, Goodyer I. Non-suicidal self-injury. Eur Child Adolesc Psychiatry. 2011 Feb;20(2):103–8.
25 - Klonsky ED. The functions of self-injury in young adults who cut themselves: clarifying the evidence for affect-regulation. Psychiatry Res. 2009 Apr;166(2–3):260–8.
26 - Glenn C, Nock MK. Nonsuicidal self-injury in children and adolescents: General principles of treatment [Internet]. Post TW, editor. Waltham, MA: UpToDate; 2023. Available from: www.uptodate.com
27 - van der Feltz-Cornelis CM, Sarchiapone M, Postuvan V, Volker D, Roskar S, Grum AT, et al. Best practice elements of multilevel suicide prevention strategies: a review of systematic reviews. Crisis. 2011;32(6):319–33.
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