Autores: Isabel Correia*, Cláudia Pires**,
*Médica Interna de Formação Específica em MGF; **Assistente de MGF
A prática desportiva na idade pediátrica influencia a saúde e atividade na idade adulta pelo que investir na saúde de crianças e adolescentes é investir na saúde da população adulta do futuro.
Segundo a OMS1, para esta população-alvo (5-17 anos) é recomendado:
- Realizar, pelo menos, uma média de 60 minutos por dia, de atividade física de intensidade moderada a vigorosa, maioritariamente aeróbia (Fig.1, Tab.1);
- Incorporar em pelo menos 3 dias por semana atividades aeróbias de intensidade vigorosa, bem como de fortalecimento muscular e ósseo (Fig.1, Tab.1);
- Limitar o tempo de comportamento sedentário (Tab.1), particularmente a quantidade de atividades recreativas em frente aos ecrãs.
Numa primeira abordagem estas recomendações podem parecer muito ambiciosas, mas é importante transmitir que mesmo não sendo possível cumpri-las, praticar alguma atividade física é melhor do que nenhuma e será sempre benéfico para a saúde.
É importante oferecer a todas as crianças e adolescentes oportunidades seguras e equitativas, encorajando a participação em atividades físicas que sejam divertidas, diversificadas, e adequadas à sua idade e capacidade.
A prática de desportos de impacto (Tab.1), tem particular importância nesta faixa etária, pelos benefícios na melhoria da densidade óssea, o que não acontece com os desportos de baixo impacto (Tab.1), sendo que a participação em desportos de endurance (como corrida de longa distância e ciclismo) pode estar inclusive associada à sua diminuição. Deste modo, o exercício de longa duração de baixo impacto deve ser prescrito com algum cuidado aos jovens atletas2.
O Médico de Família e o Pediatra têm um papel fundamental na promoção de hábitos e estilos de vida mais saudáveis e na manutenção desse equilíbrio, junto dos jovens e das famílias.
Entre os principais benefícios da prática de exercício na adolescência, destacam-se:
- Prevenção da obesidade e melhoria da composição corporal;
- Redução de fatores de risco para doenças cardiovasculares (DM tipo 2, hipertensão, hipercolesterolemia);
- Prevenção da osteoporose através da prática de atividades de impacto: corrida, jogos coletivos - associadas a melhor densidade óssea mas também a maior risco de lesão;
- Melhoria do desenvolvimento dos sistemas músculo-esquelético e cardiovascular;
- Melhoria da saúde mental e bem-estar psicológico: redução da ansiedade, stresse e depressão; melhoria da autoestima, da função cognitiva e integração social;
- Aprender a lidar com o sucesso e o insucesso e reduzir os comportamentos de risco.
Existem atualmente dois grandes problemas associados à atividade física na adolescência, por um lado o sedentarismo e a obesidade infantil, relacionados com o aumento crescente das novas tecnologias e a normalização do comportamento sedentário; por outro lado, e localizado no extremo oposto, o treino de alto rendimento, frequentemente associado a especialização precoce, sobretreino e lesões de “sobrecarga”, que podem conduzir ao abandono precoce da prática desportiva.
Vários estudos demonstraram que uma boa capacidade aeróbia está ligada ao aumento de proteínas específicas que estimulam o crescimento de novos neurónios e à criação de novas sinapses, o que melhora o controlo cognitivo, a memória e a aprendizagem com melhoria igualmente dos resultados escolares3,4. A capacidade cardiorrespiratória e as habilidades motoras desempenham um papel importante no desenvolvimento cognitivo durante a infância, sendo que crianças fisicamente mais bem preparadas têm maiores estruturas subcorticais, melhor memória e atenção, melhor controle inibitório e ativação cerebral mais eficiente5.
Deve, portanto, ser combatido o estigma de que melhor condição física ou “mais músculo” é incompatível com bons resultados académicos, e além de perguntar pelo aproveitamento escolar é importante também questionar sobre a condição física.
A influência do exercício no desenvolvimento físico e psicossocial dos adolescentes vai depender do tipo de envolvimento dos jovens na prática desportiva, ou seja, se é do tipo recreativo ou de alta competição. Este último, tem mais riscos associados, nomeadamente:
- Lesões de sobrecarga;
- Alterações hormonais;
- Isolamento social, sobrecarga horária, stress competitivo, Burnout;
- Insucesso académico, por priorização do desporto.
No sexo feminino, o treino de alto rendimento parece ter um acréscimo de risco6, principalmente devido à “Tríade da Atleta Feminina” - problemas alimentares, amenorreia e osteoporose – mais frequente em desportos onde a composição corporal tem particular importância (ginástica, judo).
O papel do médico assistente deve ser aconselhar e ajustar a qualidade do processo de treino a longo prazo, de modo a permitir a excelência desportiva sem influenciar negativamente a saúde. Mesmo pensando no rendimento, a formação desportiva deve cumprir em primeiro lugar os objetivos sociais e pedagógicos, e de ganhos em saúde, e só depois os desportivos, de forma a priorizar a saúde do adolescente.
Uma formação desportiva a longo prazo adequada deve considerar a influência dos processos de crescimento e maturação das respetivas características e processos adaptativos dos jovens praticantes. A criança e o adolescente não devem ser vistos como “mini adultos”, não sendo a redução da carga suficiente para se adaptar às características individuais. Conhecer as especificidades das alterações decorrentes nas diferentes etapas de desenvolvimento neuro-motor permite-nos uma prescrição mais correta da metodologia de treino (Fig.2), sendo a pré-adolescência e adolescência duas fases com particular importância.
Descrevem-se então duas fases essenciais, os chamados “períodos sensíveis”, onde ocorre aumento da capacidade funcional:
- Pré-adolescência (antes do Pico Velocidade em Altura): ocorre na mesma idade cronológica em ambos os sexos; corresponde ao desenvolvimento neural com melhoria da coordenação intermuscular/controlo do movimento e adaptação acelerada do sistema neuro-motor (técnica de execução, velocidade, flexibilidade).
Fase ideal para treinar as habilidades motoras fundamentais (alfabetização motora), ou seja, as capacidades que não se perdem tão facilmente perante a ausência de treino (bicicleta, natação). Portanto antes da puberdade devemos focar-nos na dimensão informacional, cognitiva e coordenativa da atividade de forma a melhorar a técnica, capacidades coordenativas/percetivas e decisionais;
- Adolescência: ocorre numa idade cronológica mais precoce nas raparigas; desenvolvimento do sistema endócrino e metabolismo anaeróbio, aumento do comprimento dos membros e massa muscular, devido ao aumento das concentrações das hormonas sexuais.
Fase ideal para dar maior atenção à dimensão física e adaptação funcional (velocidade, força e resistência).
Nestas idades, também é muito frequente ocorrer discrepância entre a idade cronológica e a idade biológica, pela variação na idade em que se atinge o salto pubertário. Esta disparidade, associada ao efeito da idade relativa (diferença na idade cronológica - até 11 meses - entre indivíduos que competem no mesmo escalão etário), pode resultar em diferenças significativas no desempenho, sendo que os atletas nascidos no último trimestre não têm as mesmas oportunidades de treino e de desenvolvimento9. Uma vez que cria desequilíbrios e sobrevaloriza a idade cronológica, não proporcionando as mesmas oportunidades para potenciar as habilidades desportivas a todos os jovens, este efeito deve ser combatido ao informar e consciencializar os treinadores, mas também os atletas e respetivas famílias, da importância de avaliar o estado maturacional dos jogadores e evitar a seleção de talentos em idade precoce.
Esta determinação pode ser feita pelo médico de família e pediatra, através da avaliação da idade óssea ou idade sexual, ou através da aplicação da fórmula de Mirwald7 (Fig.3) para estimar a idade em que ocorre o Pico de Crescimento em Altura, ao subtrair o resultado à idade cronológica do adolescente.
O conhecimento do estadio de desenvolvimento do jovem permite a adoção de estratégias como o Bio-banding9, que consiste no agrupamento dos atletas com base em atributos associados ao crescimento e maturação, em vez de idade cronológica, de forma a permitir uma maior competição e evolução entre os maturadores precoces, mas também melhores oportunidades para os maturadores tardios.
Além disso, conhecer o estado maturacional do jovem permite prever possíveis problemas associados, nomeadamente nos maturadores tardios do sexo masculino que por vezes se sentem inferiores e com diminuição da auto-estima, ou das maturadoras precoces do sexo feminino, em que o aumento da massa gorda pode ter influência negativa no desempenho desportivo.
A especialização desportiva precoce é definida como a realização de treino intensivo durante todo o ano (mais de 8 meses por ano), concentrado apenas numa modalidade desportiva, no período anterior à puberdade (ou <12 anos)11,12,13.
As consequências negativas da especialização aumentam quando os jovens praticam uma modalidade durante mais de oito meses por ano, têm mais de 16 horas totais de atividade desportiva organizada por semana, o número de horas de treino por semana é superior à idade, e quando o tempo de prática deliberada excede o dobro do tempo de atividades lúdicas14.
Cargas de treino muito elevadas provocam um esgotamento prematuro das reservas de adaptação e da capacidade de rendimento dos jovens atletas, levando ao abandono precoce da prática desportiva, sendo por isso importante aumentar de forma gradual as cargas de treino e a adaptação à atividade competitiva.
Esta avaliação, realizada muitas vezes pelo Médico de Família no contexto do preenchimento do formulário de aptidão para a prática desportiva do IPDJ (Fig.4; Tab.2) https://ipdj.gov.pt/documents/20123/159879/Formulario-Exame-medico-desportivo.pdf/b3c0f99d-2a98-a3d7-8e0d-96ff9dae383e?t=1672053411709), tem como principal objetivo rastrear: problemas de saúde que possam ser impeditivos ou vir a agravar com a prática do exercício/modalidade pretendida; fatores de risco para a ocorrência de morte súbita; situações predisponentes ao aparecimento de lesões e sua correção; prática de modalidade/exercício desadequada ao desenvolvimento e biótipo.
Idealmente deve ser realizada anualmente, com revisão de todos os parâmetros, avaliação de novos sintomas, realização de exame objetivo detalhado, com especial atenção na componente cardio-respiratória, e eventual realização de exames complementares de diagnóstico, nomeadamente:
- Electrocardiograma (ECG): a partir dos 12 anos de idade (em idades inferiores não se considera custo-efetivo pela baixa intensidade/duração dos treinos);
- Radiografia torácica: apenas na presença de indicação clínica; importante na exclusão de patologia pulmonar, cardíaca ou osteoarticular;
- ECG com prova de esforço: exame de segunda linha para avaliação do comportamento de disritmias detetadas pelo ECG padrão e da reação hipertensiva no esforço;
- Ecocardiograma: deve ser realizado na presença de alterações patológicas no ECG de repouso (Figura 5), alterações suspeitas ao exame objetivo (sopro não inocente) ou perante sintomas como palpitações ou síncope de esforço.
É importante estimular o envolvimento precoce dos jovens na prática desportiva, ao criar condições para a criança experimentar várias modalidades (evitando a sua especialização precoce), mas tendo em conta os períodos sensíveis e a capacidade de retenção das adaptações para a escolha da atividade desportiva.
Além disso, o nosso papel é ajudar os jovens a manter o equilíbrio entre o desporto e outras vertentes da sua vida (escola, família e amigos) e promover uma competição saudável, que valoriza a perseverança, o trabalho e a evolução do praticante antes do seu resultado competitivo.
Bibliografia:
1 - Recomendações da OMS para atividade física e comportamento sedentário: Resumo [WHO guidelines on physical activity and sedentary behavior: at a glance]
2 - Influence of Sports Participation on Bone Health in the Young Athlete: A Review of the Literature. Adam S. Tenforde, MD, Michael Fredericson, MD
3 - The Role of Aerobic Fitness in Cortical Thickness and Mathematics Achievement in Preadolescent Children
4 - Longitudinal associations of physical fitness and body mass index with academic performance
5 - Haapala, (2013). Cardiorespiratory Fitness and Motor Skills in Relation to Cognition and Academic Performance in Children - A ca Review Journal of Human Kinetics, 36, 55-68
6 - Frisch et al. 1981; Georgopoulos et al., 2001);
7 - Mirwald, Baxter-Jones, Bailey, & Beunen (2002)
8 - Physical activity and health in children and adolescents: A guide for all adults involved in educating young people (2006)
9 - Cumming, et al. (2017), Bio-banding in Sport: Applications to Competition, Talent Identification, and Strength and Conditioning of Youth Athletes
10 - Balyi, Way, Higgs, Norris, & Cardinal (2016), Long-Term Athlete Development (LTAD)
11 - Padaki et al. (2017), Factors That Drive Youth Specialization
12 - Brenner (2016), Sports Specialization and Intensive Training in Young Athletes
13 - Jayanthi et al. (2020), Risk of Injuries Associated With Sport Specialization and Intense Training Patterns in Young Athletes: A Longitudinal Clinical Case-Control Study
14 - Jayanthi et al, (2019), Health Consequences of Youth Sport Specialization
15 - Graziano, et al. (2022). Cost-effectiveness of the cardiovascular pre-participation screening in children practicing sport. European Journal of Preventive Cardiology.
16 - Drezner JA, et al. (2017) International criteria for electrocardiographic interpretation in athletes: consensus statement. Br J Sports Med 2017; 51:704–731.
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